quinta-feira, 28 de março de 2019

PRA NÃO MAIS BAILAR NA CURVA (CRÔNICA DA SEMANA)


Quando meu filho, ainda adolescente, pergunta do que eu gostava quando tinha a idade dele, quais eram as expressões que eu usava, que bandas eu curtia, sempre nasce uma conversa com muitas histórias e divertidas memórias. Não vivo no passado, ouço músicas de artistas contemporâneos, tenho referências fortes de cada tempo vivido e que me compõem. Mas, as músicas que escutei na minha adolescência, os livros que li, os filmes que vi e as peças de teatro que sonhei assistir, sempre serão referências fundamentais. Não há como edificar algo bom sem uma base sólida, nem um prédio, nem um ser humano, menos ainda uma sociedade.
Em tempos de bases estremecidas, há que se falar sobre elas. Em tempos onde a história é maquiada, distorcida, denegrida. Em tempos em que a ciência é desacreditada, a educação atacada, a cultura desprezada e a violência exaltada, há que se falar sobre isso. Para onde vamos com tudo isso?! Que base é essa que se pretende construir para o futuro dos cidadãos brasileiros?
Lembro que meu primeiro sonho de ir ao teatro nasceu aos doze anos de idade, quando assistia pela TV as entrevistas e bate papos com os atores da peça Bailei na Curva. Ir ao teatro na capital, naquela época, não era algo simples para quem morava no interior e tinha pouco dinheiro. Realizei esse sonho uma década mais tarde, quando a trupe de atores se reuniu para celebrar os dez anos da peça. Vi Bailei na Curva com a trupe original e depois outras tantas montagens. Ano passado levei meu filho, já adolescente, para assistir ao “Bailei”, porque queria compartilhar com ele essa história e essa experiência. E foi lindo!!
Bailei na Curva mostra a trajetória de um grupo de crianças, vizinhas da mesma rua, na cidade de Porto Alegre, e tem como pano de fundo os fatos políticos ocorridos a partir do golpe militar de abril de 1964 até o movimento das Diretas Já, em 1984. Bailei traz um jogo cênico lindo, a história é profunda e aborda um tema que precisa ser falado para que não sejamos sugados pelo Alzheimer Político que nos cerca, para que possamos olhar para o passado e lembrar o quão difícil foi para tantas pessoas. Para que a memória nos permita vislumbrar um futuro menos violento. Bailei na Curva consegue, ao abordar os duros anos do regime militar, a partir da ótica de um grupo de crianças, que tornam-se adolescentes e depois adultos, tocar de modo sensível e descontraído nessa ferida aberta e ainda sangrante da nossa história.
Assim como Bailei na Curva, habitam meu imaginário poético reflexivo filmes como Verdes Anos, Em teu Nome, Amores de Chumbo, O ano em que meus pais saíram de férias, Feliz Ano Velho, entre outras tantas narrativas necessárias. São histórias que me tocam profundamente, pois sei que para além da poesia da narrativa ficcional estão histórias reais.
Não é possível olhar para toda essa obra narrada, escrita, cantada, ouvir os relatos dos sobreviventes e dizer que nada daquilo existiu. Não é possível olhar para tanta violência e deixar pra lá. É inacreditável haver quem queira enaltecer torturadores, desqualificar a vida, celebrar a dor. Se é verdade que quem planta vento colhe tempestade, esse plantio de violência verbal, ideológica, armada, vai nos levar direto para o olho do furacão. É preciso não apagar as páginas tristes da nossa biografia, é necessário lembrar o percurso inteiro, para que possamos aprender com a dor - seja minha ou de outra pessoa -, para que não sigamos bailando a cada curva dessa história.

domingo, 24 de março de 2019

NASCIMENTO DO SENTIDO (NANCY HUSTON)


Trecho do texto "Nascimento do Sentido", primeiro capítulo do livro "A Espécie Fabuladora: um breve estudo sobre a humanidade", de Nancy Huston (Ed. L&PM, 2010).

“ ‘No princípio era o Verbo’ quer dizer o seguinte: o verbo (a ação dotada de sentido) é que marca o começo da nossa espécie.
A narrativa confere à nossa vida uma dimensão de sentido que os outros animais ignoram. [...] O sentido humano se distingue do sentido animal pelo fato de que ele se constrói a partir de narrativas, de histórias, de ficções. [...]
Para nós, não basta registrar, construir, deduzir o sentido dos acontecimentos que se produzem em torno de nós. Não: precisamos que esse sentido se desdobre – e o que faz com que ele se desdobre não é a linguagem, mas a narrativa. É por isso que todos os humanos elaboram formas de marcar o tempo (rituais, datas, calendários, festas sazonais, etc) – marcação que é indispensável para a eclosão das narrativas.
Os macacos podem aprender milhares de palavras e chegam a manipular signos linguísticos, mas eles não contam histórias”.
HUSTON, Nancy. A Espécie Fabuladora: um breve estudo sobre a humanidade. Porto Alegre, RS: L&PM, 2010.

quinta-feira, 21 de março de 2019

CONTAR HISTÓRIAS EM TEMPO ESTRANHOS (CRÔNICA DA SEMANA)



Será que as crianças ainda querem ouvir histórias, estando cercadas por tanta tecnologia? Sim, as crianças querem ouvir histórias, as crianças querem jogar cartas, querem andar de bicicleta, fazer piqueniques e jogar bola. Mas as crianças não podem fazer tudo isso sozinhas, não podem fazê-lo sem um adulto que aponte caminhos, que construa pontes.
A pergunta que devemos fazer não é se as crianças ainda querem, mas se os adultos ainda são capazes de pausar seus afazeres profissionais ou domésticos, bem como distanciar-se da tecnologia à sua volta, para passar alguns instantes vivendo o momento presente com seus pequenos.
- Não posso perder tempo, dizem alguns. “Só perde tempo quem acha que não tem mais tempo a perder”, diz uma canção que gosto. Se estamos vivos, sempre há tempo. Não há tempo perdido, há tempo investido. Tempo partilhado é tempo vivido, é tempo de plantar semente em terra fértil. A infância é tempo de plantio e germinação. É verdade que quando as crianças crescem tudo pode acontecer, muitos são os fatores que contribuem para que escolham este ou aquele caminho, mas as sementes dos bons afetos, se plantadas com carinho, tem sempre potencial para germinar em algum momento futuro.
Contar histórias para uma criança é plantar sementes. “As histórias são bálsamos medicinais”, diz Clarissa Pinkola Estés. As histórias trazem em si códigos que podem nos orientar sobre as complexidades da vida. Em uma boa história contada, narrada pela boca de um familiar que pausa suas tarefas cotidianas para estar com sua criança, o pequeno encontra presença amorosa, que lhe convida a viver aventuras, a passar por lugares estranhos, experimentar o medo de modo seguro, ampliar a imaginação de modo criativo, demonstrar sentimentos ambíguos. Uma boa história partilhada com outra pessoa é ponto de encontro e de partida. A partir de uma narrativa, muitos assuntos poderão surgir e serão pretexto para mais tempo de conversa, para alinhavar próximos encontros.
Estamos entrando no outono aqui no hemisfério sul, período de recolhimento, de ficar mais tempo dentro de casa, de passarmos mais tempo dentro de um mesmo espaço. Mas partilhar o espaço não significa partilhar a presença. O espaço compartilhado não é suficiente para estar junto, é preciso intenção, desejo, tempo, pausa. Uma boa dica é procurar, sempre que possível, juntar-se à mesa para uma refeição, fazer o tema da escola junto com o filho, trocar 15 minutos de TV ou computador por um livro de histórias, fazer piquenique embaixo da mesa, jogar um jogo de tabuleiro ou de cartas. Se queremos que as crianças saiam da frente da TV, do computador ou do celular, é preciso que nós adultos também o façamos. É preciso estabelecer novas conexões, mais próximas, afetivas e reais. Se não o fizermos, não adianta reclamar que os filhos crescem muito rápido.