Em 1994 Gilberto Gil escreveu sobre a novidade
que ♫ “veio dar à praia, na qualidade rara de
sereia [e que tinha] /
metade o busto de uma deusa Maia/ metade um grande rabo de baleia”. Cantava
e contava ele sobre o paradoxo daquela novidade estendida na areia, já que
muitos sonhavam com seus beijos de deusa e outros desejavam seu rabo pra a
ceia. Gil é genial com suas palavras que brincam ao olhar para as incongruências
do mundo e do humano e nos faz pensar sobre outros tantos paradoxos criados por
nós.
A quarta semana do mês de agosto desperta em mim
sentimentos e pensamentos que podem parecer paradoxais, mas que são
absolutamente complementares. Entre os dias 21 a 28 de agosto, acontece
a Semana Nacional da Pessoa com Deficiência Intelectual e Múltipla, com o
objetivo de abrir debates e colocar a sociedade em reflexão sobre questões que
envolvem inclusão e igualdade de direitos e oportunidades.
Logo no comecinho da Semana Nacional da Pessoa com
Deficiência, é celebrado também o Dia do Folclore. E qual a relação entre o Dia
do Folclore e a Semana Nacional da Pessoa com Deficiência? Talvez nenhuma. Mas,
como relação é algo criado pela mente, a partir da nossa percepção de mundo e,
como habita em mim, ao mesmo tempo, a fisioterapeuta e a contadora de
histórias, acabo por brincar com a imaginação tecendo relações que me acolhem e
são acolhidas por mim.
Você já reparou que muitos dos personagens do
folclore brasileiro trazem em seus corpos marcas distintas, que aqui no mundo
real chamamos de deficiências? Ao Saci falta uma perna, à Mula sem Cabeça falta
a cabeça, o Curupira tem os pés voltados para trás e a Iara um rabo de peixe. A
Semana Nacional da Pessoa com Deficiência e o Dia do Folclore não tem relação
direta. Mas poderiam ter, na medida em que ambos nos chamam à reflexão para
lembrar daquilo que nos torna verdadeiramente humanos, a memória, o respeito, a
empatia e o cuidado.
Ao falar sobre o paradoxo da sereia, Gil canta e
conta também sobre a desigualdade que coloca ♫ De um
lado este carnaval, de outro a fome total” ♫. E
se fôssemos capazes de sonhar e criar um mundo menos desigual, com mais
respeito e empatia entre todos os seres? Talvez, se acreditássemos nas pessoas
como as crianças pequenas acreditam nos seres fantásticos, sem questionar suas
potencialidades, apesar de suas diferenças físicas, fôssemos capazes de
aprender mais uns com os outros e fazer mais uns pelos outros.