quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

CAIXINHA DE DESEJOS

Este é o último texto de dois mil e dezenove. Em nosso próximo encontro já será dois mil e vinte. Particularmente, não gosto de retrospectivas, sempre às acho deprimentes. Frequentemente são retrospectos das piores desgraças do ano. Dois mil e dezenove foi um ano e tanto de acontecimentos e verborragias, um ano que vai deixar muitas cicatrizes e inúmeras sequelas. Mas estamos na reta final e pela frente há o futuro, um futuro que depende de cada um de nós, do modo como vamos olhar e tocar a vida em frente.
Deixo aqui registrado, neste texto que não se pretende uma crônica, mas uma caixinha de desejos, minhas esperanças para dois mil e vinte, pois há que se manter a chama da esperança sempre acesa. 
Desejo que em dois mil e vinte a terra volte a ser esférica, para que ninguém corra o risco de cair da borda e se machucar. Que possamos voltar a ser uma bola molhada e giratória. Que o Sistema Solar possa ser ressuscitado. Que a gravidade seja considerada, para que ninguém se machuque ao descansar à sombra de uma árvore frutífera. Que o aquecimento global seja levado a sério, antes que acabemos com este planeta, seja ele esférico ou plano.
Você pode estar achando que enlouqueci, o que é bem razoável. Mas, eu ainda não enlouqueci, ainda não. Em dois mil e dezenove muita gente tentou nos fazer acreditar que a terra é plana, que o sistema solar não existe, que não há aquecimento global, pois ainda faz frio no inverno; que não existem queimadas na Amazônia porque a floresta é úmida, que Paulo Freire é um energúmeno, que há plantações extensivas de maconha nas universidades federais, que Newton e Einstein são pseudocientistas, que três de cem é igual a trinta por cento, que fumar faz bem e vacina faz mal à saúde. Vou parar por aqui, porque as afirmações pautadas em teorias insanas e achismos paranoicos foram tantas que seria necessário um livro inteiro para registrá-las.
Mas porque algumas pessoas acreditam em afirmações completamente sem sentido? Possivelmente, porque quem às afirma não hesita, não questiona, nem abre espaço para o diálogo. Quem às afirma, cria argumentos tão cheios de detalhes, que às torna críveis. Na literatura chamamos isso de ficção. A boa ficção é a que faz você entrar dentro da história, criar simpatia ou antipatia pelos personagens, deixar-se afetar pela história narrada.
Por isso, coloco na minha caixinha de desejos para dois mil e vinte muita leitura, para que sejamos capazes de discernir realidade de ficção, ciência de achismo, fatos de mentiras. Coloco também muita arte, todas as artes, música, dança, teatro, literatura, cinema, artes visuais, artes plásticas e artesanato, para que possamos nos abrir para o sensível, para o humano, para o pensamento crítico. Coloco todos os livros de literatura e também filosofia, sociologia e antropologia, para que a ética possa habitar novamente entre nós. Coloco a empatia, o diálogo, a presença, a não violência, a esperança e a ação. Que 2020 seja potente e repleto de bom senso!! 

quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

ABRA SUA CAIXINHA DE CORREIO

“Poucas vezes meu corpo me derruba. E me assusto quando ele faz questão de mostrar que quem manda na nossa relação é ele”. Foi assim que finalizei a mensagem que escrevi há poucos dias para uma amiga. Naquele dia era para estarmos juntas, mas eu não consegui, meu corpo não deixou, puxou o freio de mão.
Isso acontece com boa parte das pessoas com quem convivo. A gente vai tocando a vida, colocando as tarefas profissionais, acadêmicas e escolares como prioridades absolutas. Raras são as vezes que somos prioridade em nosso próprio cotidiano. Frequentemente vamos ao limite do cansaço físico até que, incapazes de dizer chega, o nosso corpo fala por nós.
Sim, o corpo fala. Ele avisa que está cansado, manda uma dorzinha aqui, uma contratura ali. Ele também avisa quando está no limite, aumentando a intensidade ou a frequência daquela dor ou desconforto. Mas, a gente vai empurrando pra depois, pra quando sobrar um tempo que não sobra nunca.
Nessas horinhas o corpo, o nosso corpo, passa a ser percebido como um incômodo, que nos limita, que entrava nossos projetos. E já que somos incapazes de dialogar com ele, de perguntar gentilmente o que ele tem, de que modo podemos ajudá-lo, tentamos calá-lo, com analgésicos, antiinflamatórios, antiácidos e relaxantes musculares.
Podemos não responder a e-mails ou mensagens no whatsApp, mas é quase impossível não responder ao correio do corpo. Podemos deixar pra depois, mas haverá um momento em que o carteiro baterá com tanta força em nossa porta que será impossível não escutar suas batidas.
É fácil perceber que estamos cada dia mais acelerados. Podemos dizer que a culpa é da tecnologia, que foi chegando na esperança de tornar a vida mais fácil e acabou por torná-la mais apressada. Mas a tecnologia não faz nada sozinha. Um liquidificador não funciona se não dermos função a ele.
Se conseguirmos compreender isso, talvez sejamos capazes de perceber que a culpa não é da tecnologia, mas de nossas prioridades. Afinal, sou eu a responsável por administrar o meu cotidiano. Apenas eu posso dialogar com minhas rotinas e com meu corpo. A chave dessa caixinha de correio é minha.
Essa é mais uma daquelas que chamo de “crônica egoísta”. Estou escrevendo para mim e partilhando com você, que pode, como eu, ter uma grande dificuldade de escuta do próprio corpo. Talvez você, como eu, também seja um tanto procrastinador, ou procrastinadora, do cuidado de si. Talvez você, como eu, também se esqueça onde colocou a chave da caixinha do correio. Talvez também precise, vez ou outra, que alguém avise que é hora de encontrar a chave e organizar a casa corpo. Porque se não fizermos isso, nosso corpo vai nos lembrar da bagunça que fizemos.
Que neste Natal o Papai Noel traga uma cópia extra da chave da nossa caixinha de correio e que tenhamos muito cuidado para deixá-la guardadinha num lugar onde a memória possa sempre encontrá-la. Que o espírito natalino desperte nossa capacidade de dialogar mais e melhor com o outro e com nosso próprio corpo. Feliz Natal!! 

quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

SOBRE ENSINAR E APRENDER

Sempre que o ano escolar chega ao fim me pego pensando se, como professora, ensinei tudo que era necessário, se aprendi tudo que podia na partilha com os alunos. Se ouvi suas perguntas de modo verdadeiramente atento e se o fiz da melhor forma que pude. Será que os desafiei o suficiente? Será que respeitei satisfatoriamente suas subjetividades? Será que abracei quando necessitavam do meu abraço? Será que fui suficientemente boa como professora?
É muito provável que não. Ou, ao menos, que não tenha sido satisfatoriamente suficiente para todos. É fato que quem somos, como profissionais, vai além de nossas habilidades e competências técnicas, científicas e afetivas. Somos também o que os outros projetam sobre nosso ser e nosso fazer. É por isso que coletivamente, nunca seremos percebidos da mesma forma pelos indivíduos de um grupo. Embora o nosso fazer seja um só em determinado momento, as percepções sobre ele não são coletivas, mas individuais.
No ambiente escolar, por exemplo, um professor dá a mesma aula para um grupo de alunos. Ao final da aula, alguns estudantes terão aproveitado e aprendido mais e outros menos. A razão disso pode ser muitas. Um estudante pode, naquele dia, estar com dificuldade de manter-se atento, pois está passando por uma situação pessoal delicada, ou porque precisou trabalhar até mais tarde e está com sono, ou porque não aprecia aquela temática, ou porque a metodologia escolhida não foi adequada para o seu modo de aprender.
Um outro estudante, por sua vez, pode estar bastante atento, seja porque se identifica com o tema, ou com o professor, ou porque o professor propôs uma metodologia diferente que o motivou, ou porque é muito competitivo e quer tirar a melhor nota. As razões para aprendermos mais e melhor, ou com maior dificuldade, são inúmeras.
Todas estas questões interferem nos processos de ensinar e aprender que, ao meu ver, é sempre uma via de mão dupla, tanto para o ensinante quanto o para aprendente, dentro e fora da escola. Desde pequenos ouvimos que “quando um não quer dois não brigam”. Isso é real em muitas instâncias do viver, inclusive para ensinar e aprender. Para que uma aula seja bacana, para que o aprendizado aconteça, é preciso que este seja um desejo de todos, é necessário que todos se comprometam.
Ensinar e aprender são verbos a serem conjugados no coletivo, não é possível vivê-los de forma platônica. Não se ensina, nem se aprende na vida apenas observando, sem se aproximar, sem experimentar, sem interagir com as pessoas, as ideias, os objetos, a natureza. Estes dois verbos só (co)existem quando conjugados coletivamente, no viver cotidiano, dentro e fora das salas de aula. Ensinar é tarefa de todos que se colocam na vida de modo afirmativo e desejoso. Aprender é consequência da interação mútua, nos múltiplos espaços do viver. 

quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

A VERDADE ANDA TÃO DÉMODÉ

A arte sempre fez parte da minha vida, especialmente a música e literatura. Eu não toco nem caixinha de fósforo, mas meu pai era um exímio guitarrista. A casa dos meus pais sempre foi muito musical, meu pai ouvia rock instrumental, Beatles e orquestras, minha mãe gostava de Roberto Carlos e Elis Regina.  Eu virei o mix dos dois e vivi a efervescência do rock nacional dos anos 80.
Minha banda favorita, desde a adolescência, sempre foi a Legião Urbana. De todos os discos, Legião Urbana Dois é o meu preferido. Na última faixa do Legião Urbana Dois, Renato Russo canta, com sua voz grave: Quem me dera ao menos uma vez/ Explicar o que ninguém consegue entender/ Que o que aconteceu ainda está por vir/ E o futuro não é mais como era antigamente// Quem me dera ao menos uma vez/ Provar que quem tem mais do que precisa ter/ Quase sempre se convence que não tem o bastante/ Fala demais por não ter nada a dizer.
Legião Urbana é tão anos 80 e tão 2020 que nem sei explicar. Nem precisa de explicação, é só cantar, pensar e sentir. Legião Urbana não é incontestável, mas é real demais. E ser real demais em tempos de falsas verdades, é um perigo. Talvez, por esta razão, tenta-se desacreditar a arte, a educação, a ciência, bem como os artistas, os educadores e os cientistas.
Que mundo bacana seria este se nossos jovens aprendessem a ler e compreender o que leram em livros, letras de músicas e obras de arte. Se esse exercício de ler e conjeturar, ouvir e discutir, observar e refletir, fosse uma constante na vida cotidiana de nossas crianças e jovens, seria suficiente para que soubessem distinguir realidade de ficção, metáfora de pensamento concreto,  verdades de falsas verdades. 
Em 2016 o Dicionário Oxford cunhou um termo que resume esses tempos estranhos e paranoicos que andamos a viver no Brasil e no mundo. A pós-verdade  (post-truth), diz o Dicionário Oxford, “relata ou denota circunstâncias em que os fatos objetivos têm menos influência na opinião pública que o apelo às emoções e às crenças pessoais”. 
Em tempos de Fake News já não importa que a notícia veiculada seja falsa, contanto que ela se encaixe no que eu acredito, naquilo que eu sinto que deva ser a verdade. Penso que essa é a síntese da pós-verdade. No mundo da pós-verdade já não são os fatos que organizam as coisas e sim as percepções e os sentimentos, por mais absurdos que eles possam ser.
Na época da pós-verdade, não há como contestar qualquer argumento com fatos ou evidências científicas, uma vez que esta se sustenta em achismos e não em evidências. A pós-verdade tornou o diálogo impossível. O mundo evoluiu até aqui com a ciência porque ela é questionável, porque suas verdades não são absolutas. Mas no mundo da pós-verdade, se eu achar que é, então é. E não há como contradizer isso, pois eu não preciso provar nada, preciso apenas sentir que algo é verdade. Tudo que a pós-verdade não é, é libertadora.  

quinta-feira, 7 de novembro de 2019

ONDE MORA A LUDICIDADE?!

Você leu certo, o título desse texto está correto. Ainda que a felicidade possa morar perto da ludicidade, a pergunta neste momento é: onde mora a ludicidade? Há quem pense que a ludicidade mora nas brincadeiras das crianças ou nos brinquedos infantis. Que o elemento lúdico encontra-se num objeto, lugar ou tempo. No entanto, a ludicidade faz parte da vida. Uma brincadeira, uma aula, uma roda de conversa, um sarau, um brinquedo, um esporte, um filme, um museu... Todas essas coisas, lugares, situações, são potencialmente lúdicos, mas não são lúdicos em si.
Para responder a esta questão, se o lúdico pode ou não estar presente num jogo, numa brincadeira, na escola, num abraço, é preciso antes definir o que é "lúdico". Este é um dos pontos abordados pela filósofa Suzana Guerra Albornoz, em seu artigo “Jogo e trabalho: do homo ludens, de Johann Huizinga, ao ócio criativo, de Domenico De Masi”. É preciso, diz Suzana, em primeiro lugar, tomarmos consciência de haver um sentimento do lúdico. Essa tomada de consciência, ver onde há ou não o lúdico, é da ordem do sujeito e, por isso, uma experiência muito pessoal. Numa situação de jogo, por exemplo, “para um jogador que está preocupado, sofrendo muito, em tensão, talvez o jogo, não tendo mais prazer, não retenha mais o elemento de ludicidade; mas para outro que está ganhando, para quem há o prazer de estar perto da vitória, possivelmente o lúdico é possível. Assim, a noção de lúdico aparece ligada à de prazer”
Simpatizo com a ideia de que “a noção de lúdico aparece ligada à de prazer”. Ela pode ampliar muito o modo como passamos a olhar para a vida. O lúdico pode estar presente no momento de lavar a louça, fazer uma comida, jogar uma partida de xadrez, fazer um bordado, ler um livro, jogar ou assistir uma partida de futebol, vôlei, basquete ou frescobol. O lúdico está presente na nossa disposição e capacidade de sentir prazer com o que estamos a fazer e não na situação em si. 
Penso que com as crianças ocorre o mesmo. Pouco adianta ter um quarto repleto de brinquedos caros, se eles estão lá para decorar as paredes. De nada serve ter muitos jogos, se ninguém senta com ela para jogar. Brinquedo que não é brincado é objeto de decoração. Jogo que não é jogado é sucata. Nenhum jogo ou brinquedo é em si um recurso lúdico. A ludicidade está no prazer que obtemos ao jogar, ao brincar, ao partilhar e significar nossos momentos. 
A ludicidade nos acompanha, em todos os momentos da vida, na medida em que conseguimos ver sentido e encontrar prazer naquilo que estamos a fazer. Quando conseguimos olhar para a vida com mais ludicidade, aprendemos e ensinamos mutuamente e a todo instante, seja na partilha do tempo com outro ser vivo, ou quando nos permitimos ser nossa melhor companhia.

quinta-feira, 19 de setembro de 2019

NÃO SOMOS ROBÔS


 
Vivemos um tempo onde com um toque na tela estamos cercados por muita gente e de ninguém ao mesmo tempo. O dito popular “longe dos olhos, perto do coração”, nunca foi tão verdadeiro. É bem menos trabalhoso amar à distância. De longe as palavras saem mais fácil e também conseguimos projetar melhor a ideia que temos de outra pessoa. Virtualmente, aos nossos olhos, o outro se torna muito mais parecido com o que desejamos que ele seja, do que ele realmente é.
Mas, se é verdade que de longe é mais fácil amar, ou admirar alguém, odiar também é. Não por acaso vemos todos os dias pessoas destilando seus preconceitos e suas mágoas nas redes sociais. É muito mais fácil odiar com distância suficiente para não sofrer uma agressão física. É mais confortável dar opiniões com distanciamento suficiente para não se responsabilizar pelas consequências das mesmas.
É fato que vivemos tempos de virtualidades e que essa é a nova tendência mundial. Mas também é fato que nos tornamos humanos na convivência com outros humanos. Aprendemos a falar, ouvindo pessoas conversar. Quando crianças, aprendemos, na escuta do diálogo, que há tempo para falar e tempo para calar, que existem diferentes entonações para expressar, através da voz, diversos sentimentos.
É na convivência com outros humanos que percebemos nossa singularidade e nos constituímos enquanto sujeitos. Foi no brincar que aprendemos o movimento, que possibilitou outras aprendizagens. Foi na partilha dos brinquedos e dos materiais escolares, que aprendemos a ser menos egoístas. É nas rodas de conversa, com pretexto de tomar chimarrão ou cafezinho, que resgatamos as memórias que nos lembram quem somos. Afinal, somos aquilo que lembramos sobre quem somos.
Não somos robôs. Nossa memória não é um chip. Nosso corpo não é um gabinete que protege uma Unidade Central de Processamento (CPU). E nosso cérebro não é uma CPU, que armazena informações transcritas. Somos organismos vivos, aprendemos pela experiência vivida e compartilhada e não por transferência de dados.
Nós não nascemos humanos, nos tornamos humanos no convívio cotidiano e real com outros humanos. Este aprendizado se dá por muitas vias. Para aprender precisamos ver, sentir, tocar, cheirar, ouvir. Relações virtuais são interessantes, mas não substituem um abraço e todos os sentidos que ele estimula e faz transbordar em nós. Neste sentido, abraçar - demorada e amorosamente - e acolher o abraço, são atos que nos tornam potencialmente melhores.

domingo, 15 de setembro de 2019

A LENDA DA LAGOA ENCANTADA (RECONTO DO FOLCLORE GAÚCHO)

 

Contam que na região do Alegrete (Oeste), pras bandas da Serra do Caverá, existe uma lagoa de água salobra, que guarda em suas profundezas histórias de mistério e encantamento.  

A Lagoa é mágica mesmo!! - É o que dizem os gaúchos que moram pra aquelas bandas. Esses gaúchos, moradores e avizinhados do Caverá, dizem que à noite não passam nem por decreto perto da tal lagoa. Contam que é sabido que aqueles que se aventuram a passar por lá quando a lua vai no céu, é atingido por bolas de fogo que pulam de dentro da lagoa para cima do lombo do cavaleiro. Os que não sabem do encantamento são pegos de surpresa pelas tais bolas de fogo. E poucos são os que, sabendo do tal encantamento, se atrevem, por coragem ou por necessidade, passar perto de suas margens no transcorrer da madrugada.

Os viventes daqueles pagos dizem ainda que em períodos de seca, quando as águas da lagoa baixam, pode-se ver uma grande corrente, grossa e enferrujada. Vê-se apenas uma ponta, porque a outra fica lá, mergulhada no fundo da lagoa. A corrente desafia quem a vê e há quem já tenha se empenhado a tirá-la de lá. Homens e mulheres, jovens e mais velhos, ajudados por cavalos, burros, juntas de bois, já tentaram puxar a tal corrente para fora da lagoa e nada!!!

A Lagoa Encantada segue lá, mansa e linda, inspirando poetas e apaixonados com suas águas serenas. Dizem que nesta lagoa nasceu também uma linda história de amor, há muito, muito tempo. Contam que naquela região, nos tempos de antigamente, vivia uma tribo de índios Charruas. Os índios charruas foram os primeiros alegretenses. Nessa tribo vivia uma jovem índia chamada Poty-poran. Muitos guerreiros da tribo Charrua eram apaixonados por Poty-poran e faziam de tudo para agradá-la. Os mais valentes procuravam fazer os feitos mais extraordinários para chamar sua atenção e conquistar seu coração arredio.

Contam que certa vez, Inhancá-Guará, um dos guerreiros apaixonados por Poty-Poran, viu na beira da Lagoa Encantada um cavalo sem igual, de crinas prateadas e de um pelo muito negro, brilhante e macio como veludo. Inhancá-Guará pensou em jogar as boleadeiras no animal para levá-lo de presente à Poty-Poran e finalmente conquistar seu coração.

O índio encarou o animal e estranhamente o cavalo não se mexeu. Inhancá-Guará resolveu então se aproximar. E o cavalo, vendo que o índio se aproximava continuou lá, sereno, sem se opor à aproximação. Inhancá-Guará resolveu então guardar as boleadeiras e foi se aproximando suavemente, assobiando e sorrindo para o animal, que deixou-se ser acarinhado e encilhado pelo índio.

Inhancá-Guará colocou o bocal, as rédeas e até o couro de jaguaretê que usava para montar, sobre o lombo do estranho cavalo, que se deixou ser encilhado com tranquilidade. Depois de devidamente encilhado, Inhancá-Guará alçou a perna e montou de um salto só sobre o cavalo. O animal, após alguns passos mansos, disparou enlouquecido para dentro da lagoa escura, com Inhancá-Guará sobre seu lombo. E assim, desapareceram para sempre, cavalo e cavaleiro.

Poty-poran, ao saber da tragédia, colocou-se à chorar na beira da lagoa e suas lágrimas salgadas tornaram a água da lagoa salobre. E assim a lagoa é chamada até hoje: Lagoa Parobé, lagoa de água salobre, na língua dos índios.

*Reconto do folclore sul riograndense, inspirado na narrativa da Lenda da Lagoa Parobé. A Lenda da Lagoa Parobé é descrita do livro Mitos e Lendas do Rio Grande do Sul, de Antônio Augusto Fagundes, Ed. Martins Livreiro. 

quinta-feira, 12 de setembro de 2019

PRECISAMOS FALAR SOBRE ISSO



Dizem que não é verdade a história de que o avestruz enfia a cabeça no buraco quando está com medo. Parece que ele nem mesmo coloca a cabeça dentro de um buraco, apenas encosta a cabeça no chão para escutar quando o inimigo se aproxima.
Mas nossa imagem mental, do animal que esconde a cabeça e deixa o resto do corpo aparecendo para fugir do problema, é forte. Não por acaso, chamamos de estratégia do avestruz a tática de ignorar problemas reais ou potenciais, tratando-os, muitas vezes, como pouco relevantes, minimizando seu impacto social ou pessoal.  Assim fazemos com todos os temas tabus como sexualidade, drogas, alcoolismo, gravidez na adolescência, depressão, suicídio, violência e por aí vai.
Há quem pense que educação sexual nas escolas incita o desejo e até a promiscuidade. Não, educação sexual ensina os jovens a se prevenir de uma gravidez precoce e indesejada e de doenças sexualmente transmissíveis. – Mas se falar sobre isso os jovens vão querer ter relações sexuais, - você pode pensar. Acontece que não falar sobre isso não fará com que os jovens não queiram ter relações sexuais, apenas os deixará vulneráveis. Não falar sobre sexualidade em casa e na escola é usar a estratégia do avestruz.
O mesmo ocorre com muitos outros temas considerados tabus. Estamos no mês do setembro, mês em que a população é chamada a pensar e falar sobre um tema difícil e doloroso. Faz alguns anos que o mês de setembro tornou-se amarelo e isso nada tem a ver com a chegada da primavera ou o florescer dos ipês, o Setembro Amarelo é uma grande e importante campanha de prevenção ao suicídio. Neste mês especialmente busca-se conscientizar a população sobre os fatores de risco para o comportamento suicida e orientar para o tratamento adequado dos transtornos mentais, que representam 96,8% dos casos de morte por suicídio, segundo a Associação Brasileira de Psiquiatria.
É verdade que precisamos falar sobre suicídio, assim como de todos os temas que nos são indigestos, durante os doze meses do ano. No entanto, dizer que eleger um mês para falar sobre suicídio é inútil, é irresponsabilidade. Se você acredita mesmo nisso, então, fale sobre suicídio, depressão, bullying, sexualidade, drogas, violência, durante os doze meses do ano, mas fale. O que não podemos é não falar. O que não podemos é enfiar a cabeça no buraco e fazer de conta que os problemas não existem, porque o resto do corpo vai ficar exposto e frágil. Se é para fazer como os avestruzes, que coloquemos o ouvido próximo à realidade para que possamos identificar nossos verdadeiros inimigos e combate-los de frente.