quinta-feira, 27 de junho de 2019

UMA CRÔNICA EGOISTA


O escritor escreve para expressar algo, uma ideia, um sentimento, uma ruminação. Toda arte é uma forma de transbordamento. Às vezes, transbordamos algo que nos inquieta ou nos desacomoda. Outras vezes, transbordamos desejos que somos ainda incapazes de tornar realidade.
A crônica, muitas vezes, é uma ruminação. Colocamos nosso desejo ou nossa inquietação no papel e deixamos registrado, como um voto íntimo e pessoal que fazemos. Ouso dizer que o cronista escreve para, através das suas ruminações, melhor entender o mundo e se entender no mundo. Neste sentido, a crônica é um texto egoísta, porque nela a gente organiza ideias, guarda memórias, repensa os afetos, analisa os fatos, pensa a vida. O leitor, por sua vez, por motivos de empatia com o sentimento, tema, memória afetiva, ou com os fatos abordados, pode se identificar de tal modo com a leitura que pensa ser o texto a ela destinado.
Penso que isso acontece com todas as artes em que nos vemos identificados. Eu sou daquelas pessoinhas que gosta de escutar CD no carro. E muitas vezes penso que algumas músicas foram compostas para mim, que estão tentando me dizer algo e que eu preciso levar mais a sério aquilo que a letra me diz. Sim, isso é bem normal (eu acho)!!
Hoje, fui levar meu filho na escola e na volta estava tocando “Amor de Índio”, na voz de seu compositor. Amo essa música, mas tenho um conflito interno com ela, porque, seja o Beto Guedes, o Milton Nascimento ou a Maria Gadu cantando, só dou conta de acolher parte da letra. No carro, cantarolava com paixão, junto com Beto Guedes: “Sim, todo amor é sagrado e o fruto do trabalho é mais que sagrado, meu amor”. Neste momento da canção sempre penso no tanto trabalho que realizo, sempre dormindo pouco e escrevendo, atendendo, corrigindo, produzindo muito. Mas está tudo certo, afinal “o fruto do trabalho é mais que sagrado”, quero acreditar.
Mas a música anda e Beto Guedes segue cantando: “Lembra que o sono é sagrado e alimenta de horizontes o tempo acordado de viver”. Daí vem a culpa de dormir pouco e de não fazer o que deveria para cuidar de mim. Esqueço até que a “abelha fazendo mel, vale o tempo que não voou” e lembro que está na hora de adoçar mais a vida. Mas preciso terminar de corrigir provas e trabalhos de conclusão, preparar oficinas, organizar o novo livro, escrever pareceres e uma crônica (esta).
Neste momento penso que, com certeza, outros tantos também devem estar a dormir pouco e trabalhar muito, mas talvez não escrevam crônicas para transbordar. E eu aqui, em puro transbordamento!! Por isso, deixo a dica (falo para mim mesma, para ver se aprendo. Afinal, essa é uma crônica egoísta, lembra?!), o importante é transbordar, do jeito que for possível, fazendo um bolo ou pedalando uma bicicleta, fazendo palavras cruzadas ou jogando de futebol, vendo um filme ou lendo um livro, meditando ou jogando conversa fora. O que não dá é para guardar sentimentos e cansaços, nem transbordar ressentimentos ou lamentações.

domingo, 23 de junho de 2019

NARRATIVAS E IDENTIDADE (TRECHO DO LIVRO ACORDAIS, DE REGINA MACHADO)

A série "Era uma vez", apresenta leituras de pequenos trechos de obras literárias que abordam a temática da contação de histórias e da leitura compartilhada, sempre acompanhados das referências, deste modo, você pode buscar e conhecer a obra completa. “Era uma vez” é uma pequena contribuição para ampliar repertórios, curiosidade e saberes.
No vídeo de hoje partilho um pequeno trecho do livro "Acordais: fundamentos teórico-poéticos da arte de contar histórias", de Regina Machado
MACHADO, Regina. "Acordais: fundamentos teórico-poéticos da arte de contar histórias". São Paulo: DCL, 2004. 



quinta-feira, 20 de junho de 2019

A MATERIALIDADE DOS AFETOS


Alguns meses atrás presenteei uma criança com um DVD de músicas infantis que eu adoro. Naquela tarde presenciei (quase envergonhada) a expressão de perplexidade de muitos convidados da festa. Afinal, quem, na segunda década do século XXI, ainda presenteia com CDs ou DVDs? Neste sentido, os livros ainda estão em vantagem, pois são recebidos com menor espanto e algum carinho. Particularmente, aprecio a materialidade dos afetos e gosto de presentear com aquilo que me faz bem. Penso que se me minha experiência com um objeto me traz aconchego, deverá levar também a quem eu com ele presentear.
Gosto de artesanato, de objetos que tem assinatura ou que contam histórias. Poucos dias atrás fui num bazar organizado por uma amiga que vai se mudar e estava dispondo de roupas, bijuterias, livros, CDs, móveis, coisas que não iria levar junto. Cada objeto que escolhi evocava memórias, produzia sensações, mas também fortalecia nosso laço, pois era um pedacinho da vida de minha amiga do qual agora eu seria guardiã. Toda vez que eu escutar aquelas músicas, usar aquele lenço, aquele colar, estarei em conexão direta, afetiva e amorosa com ela.  Não são apenas objetos, são pedacinhos de memória, relicários de nossa amizade.
Há uma grande diferença entre ser acumuladora e guardar objetos repletos de significados. Guardo, entre minhas memórias afetivas materializadas, o vestido de bruxa que usei no Jardim de Infância, num desfile de sete de setembro; a revista do Menudo (boy band na minha geração), que tanto fiz para convencer meu avô a me dar o dinheiro para comprar; o recorte da Revista Veja (1984)  que noticiava o lançamento de “Verdes Anos”, produção cinematográfica gaúcha que foi fundamental na minha adolescência, guardo também ingressos e cartazes de shows e de filmes, materialidades que me lembram de quem sou e que resgatam memórias, momentos, pessoas.
Em nossas vidas, podemos abrir espaço para o novo, sem abrir mão das nossas lembranças, aquelas que nos alimentam, que nos mantém inteiros, que nos fazem bem. Amadurecer nos afetos, nas relações, no modo de pensar, não significa negar o passado ou deixá-lo de lado, mas seguir em frente, levando com a gente tudo aquilo que nos faz sentido e que podemos carregar.
Nossas memórias sinalizam quem somos, especialmente quem somos para nós mesmos. Alguns objetos ajudam a manter nossa memória viva e não há razão para nos separarmos daquilo que nos faz bem, sejam objetos, canções, pessoas, emoções.  Amadurecemos quando, apoiados nas nossas vivências, andamos em frente ressignificando e não negando o passado. A negação da nossa história, pessoal ou coletiva, nos faz tropeçar nos mesmos erros e não sair do lugar. Por isso, museus e narrativas (pessoais ou coletivas) são fundamentais para que a história não se perca e para que possamos seguir rumo a novas memórias.