Minha avó materna conviveu muitos anos com o Mal de
Alzheimer. Vi sua memória ir se deteriorando lenta e progressivamente. Certa
vez, depois de muitos anos do início dos sintomas, ela pegou na minha mão e, sabendo
de que havia um bom afeto EM nossa relação, disse: - a gente não é parente, mas
o importante é que a gente se gosta. Retribui o carinho na mão e respondi que
sim, que o importante era que a gente se gostava. Ouvindo essa história com
certa distância, até parece uma cena engraçada. Mas, é muito triste ver alguém
perdendo sua identidade.
O Iván Izquierdo, reconhecido pesquisador do campo
da memória, certa vez falou que nós somos as memórias que temos. De fato, nossa
identidade não está num documento, está no que sabemos sobre nós mesmos, naquilo
que faz com que cada um de nós se reconheça como sujeito único no mundo. Um
cérebro que já não consegue produzir e armazenar essas informações é um cérebro
doente.
Em uma família minimamente funcional não descartamos
nossos pais e avós porque estão desatualizados, ou porque usam expressões
antigas no seu modo de falar. Eles são a memória de um tempo que explica muito
de quem somos neste momento. Uma pessoa, ou um país sem memória estão doentes.
Esta semana fomos informados de que a Fundação
Palmares retirou de seu acervo pelo menos 5.300 livros, por considerá-los,
entre outras coisas, velhos e em desacordo com as normas ortográficas vigentes.
Entre os títulos, está o ‘Dicionário do Folclore Brasileiro’, obra clássica do
historiador Câmara Cascudo, que segundo a comissão analisadora, é "um
livro não só gramatical e ortograficamente desatualizado, mas com páginas
soltas e exibindo um forte cheiro de mofo". Foram retirados também exemplares
das obras de Machado de Assis, por acreditarem que estes prestam um
"desserviço" aos estudantes, já que apresentam Português
desatualizado.
O Mal de Alzheimer é uma doença orgânica. Por esta
razão não tentei explicar para minha avó que eu era sua neta mais velha, apenas
respeitei o seu momento e retribui o afeto. Nenhum de nós quer conviver com o
Alzheimer, seja como paciente ou como familiar. Também não quero conviver com
nada que afete ou apague as minhas memórias, ou as memórias da minha gente.
Não se muda o rumo da história, apagando as memórias
de um povo. Mirar o futuro sem preservar o passado é como andar num veículo sem
espelho retrovisor. Tentar pilotar um carro sem retrovisor é imprudente e muito
perigoso. Um carro sem espelho retrovisor está com problema, um país onde
arrancam seus espelhos também está com sérios problemas. Prevenção é o caminho para minimizar o impacto
de qualquer doença, seja ela orgânica ou social.