quinta-feira, 17 de junho de 2021

ALZHEIMER SOCIAL: SOBRE O DESMONTE DA FUNDAÇÃO PALMARES

 

Minha avó materna conviveu muitos anos com o Mal de Alzheimer. Vi sua memória ir se deteriorando lenta e progressivamente. Certa vez, depois de muitos anos do início dos sintomas, ela pegou na minha mão e, sabendo de que havia um bom afeto EM nossa relação, disse: - a gente não é parente, mas o importante é que a gente se gosta. Retribui o carinho na mão e respondi que sim, que o importante era que a gente se gostava. Ouvindo essa história com certa distância, até parece uma cena engraçada. Mas, é muito triste ver alguém perdendo sua identidade.

O Iván Izquierdo, reconhecido pesquisador do campo da memória, certa vez falou que nós somos as memórias que temos. De fato, nossa identidade não está num documento, está no que sabemos sobre nós mesmos, naquilo que faz com que cada um de nós se reconheça como sujeito único no mundo. Um cérebro que já não consegue produzir e armazenar essas informações é um cérebro doente.

Em uma família minimamente funcional não descartamos nossos pais e avós porque estão desatualizados, ou porque usam expressões antigas no seu modo de falar. Eles são a memória de um tempo que explica muito de quem somos neste momento. Uma pessoa, ou um país sem memória estão doentes.

Esta semana fomos informados de que a Fundação Palmares retirou de seu acervo pelo menos 5.300 livros, por considerá-los, entre outras coisas, velhos e em desacordo com as normas ortográficas vigentes. Entre os títulos, está o ‘Dicionário do Folclore Brasileiro’, obra clássica do historiador Câmara Cascudo, que segundo a comissão analisadora, é "um livro não só gramatical e ortograficamente desatualizado, mas com páginas soltas e exibindo um forte cheiro de mofo".  Foram retirados também exemplares das obras de Machado de Assis, por acreditarem que estes prestam um "desserviço" aos estudantes, já que apresentam Português desatualizado.

O Mal de Alzheimer é uma doença orgânica. Por esta razão não tentei explicar para minha avó que eu era sua neta mais velha, apenas respeitei o seu momento e retribui o afeto. Nenhum de nós quer conviver com o Alzheimer, seja como paciente ou como familiar. Também não quero conviver com nada que afete ou apague as minhas memórias, ou as memórias da minha gente.

Não se muda o rumo da história, apagando as memórias de um povo. Mirar o futuro sem preservar o passado é como andar num veículo sem espelho retrovisor. Tentar pilotar um carro sem retrovisor é imprudente e muito perigoso. Um carro sem espelho retrovisor está com problema, um país onde arrancam seus espelhos também está com sérios problemas.  Prevenção é o caminho para minimizar o impacto de qualquer doença, seja ela orgânica ou social.