quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

MEA CULPA (CRÔNICA DA SEMANA)


Assistimos a vida, muitas vezes, como assistimos a um filme. Interpretamos os acontecimentos da vida real como obra de ficção. Nos emocionamos com grandes tragédias do mesmo modo como nos emocionamos com dramas e romances. Somos capazes de nos comover com tragédias reais, aquelas que nos chegam pelas telas de TV, computadores e celulares, mas assistimos às notícias como se fossem obra de ficção, a não ser que tenhamos sido tocados pessoalmente por elas, sentindo no próprio corpo a dor da perda de uma pessoa querida.
Essa semana assistimos, mais uma vez, perplexos ao rompimento de uma barragem que destruiu vidas e ecossistemas, em Minas Gerais. Uma tragédia que alterou destinos, um episódio que, ainda que haja responsabilização e indenizações, não há dinheiro que possa reparar a perda. Assim foi com o incêndio da Boate Kiss, em Santa Maria (RS), assim foi com o rompimento da barragem em Mariana, em Minas Gerais (RS). Os seres humanos parecem não aprender com os próprios erros, nem mesmo se responsabilizar por eles. O lucro ainda fala mais alto do que a vida humana.
A grande maioria dos brasileiros acredita que se votar de quatro em quatro anos para compor os governos federal e estadual, intercalando a cada dois anos com as eleições municipais e que, se além disso, pagar seus impostos - muitos nem isso fazem -, suas obrigações como cidadãos foram cumpridas. Não nos co-responsabilizamos por tornar essa sociedade mais justa para todos, ainda pensamos a partir do nosso próprio umbigo e vamos só até onde nosso olho e nosso bolso alcança. Mas a vida é maior do que isso.
Toda vez que uma tragédia dessas ocorre, todos nós temos uma parcela de culpa. Não basta votar e delegar ao poder público a responsabilidade por cuidar do que é nosso, pois até mesmo o poder público busca, cada vez mais, terceirizar suas responsabilidades. Há o tanto que nos cabe, há muito desse tanto que nos cabe.
Cada vez que alguém joga um papel de bala, uma latinha ou garrafinha plástica no chão, é porque não se co-responsabiliza pelo meio ambiente e com a vida. Cada vez que alguém joga lixo no terreno baldio, é porque não se co-responsabiliza pelo meio ambiente e com a vida. Cada vez que alguém não separa o lixo, é porque não se co-responsabiliza pelo meio ambiente e com a vida. Cada vez que não cobramos dos governantes, em todas as esferas de governo, uma política de separação e reciclagem de lixo, é porque não nos co-responsabilizamos pelo meio ambiente e com a vida. 
Cada vez que alguém vota num representante que não se compromete em preservar o meio ambiente e suas reservas, bem como com a vida como um bem maior de todos e para todos, é porque não se co-responsabiliza pelo meio ambiente e com a vida. Todos somos responsáveis. As vidas que se perderam em Brumadinho, em Mariana, em Santa Maria e as que se perdem nas pequenas tragédias cotidianas são irreparáveis, mas fazer valer a legislação e punir os responsáveis pode salvar outras vidas.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

SOBRE PRINCIPES, PRINCESAS E ESTEREÓTIPOS (CRÔNICA DA SEMANA)


 
Entre as tantas questões, tomadas como cortinas de fumaça (bom lembrar que onde há fumaça, há fogo) nestes tempos estranhos, ressurge a discussão sobre os estereótipos que marcam o masculino e o feminino. Nem vou entrar na discussão de gênero, apenas dos estereótipos que tem se imposto sobre, como diz certa música, ser menina feminina e menino masculino. Mas o que significa ser menina feminina e menino masculino? Esta é uma pergunta bem complicada de responder.
Alguns defendem que ser menina é usar roupa rosa, laço no cabelo e brincar de casinha - e de modo algum, usar roupa azul, boné e brincar com carrinhos. Ser menino, neste contexto, é usar roupa azul, boné na cabeça e brincar com bola - e de modo algum, usar roupa colorida (rosa, nem pensar) e brincar de casinha.
Há cerca de 60 ou 70 anos esse modo de pensar era super contemporâneo. Mas, por mais que nosso saudosismo nos faça querer voltar no tempo, não dá para retroceder em algumas coisas e outras não. A bem da verdade, não é possível voltar no tempo, só é possível tentar impor velhos costumes.
Hoje os meninos aprendem que ser homem é diferente de ter filhos e posar de machão - e que ser pai significa participar da educação e do cuidado com os filhos. As meninas aprendem que ser mulher não é, necessariamente, ser mãe ou usar tailleur - e que ser mãe é também dividir as despesas da casa e com os filhos. Poucas são as mulheres que ainda casam para sair da casa dos pais, hoje elas trabalham. Poucos são os rapazes que usam postura de macho alfa para conquistar as meninas, porque se antes era patético, hoje é démodé.
Sim, os tempos mudaram. E, gostando ou não, andar na contramão é praticamente impossível, a não ser por imposição, doutrinação dogmática, ou cabresteamento. Dizer que se respeitarmos a singularidade de cada sujeito os meninos irão pensar que, tendo as meninas os mesmos direitos – ou seja, se podem usar calças e bermudas, jogar basquete e futebol, trabalhar fora de casa e ter opinião própria –, então podem levar porrada, é perpetuar uma cultura machista e violenta.
Se vamos passar a tratar meninas como princesas e meninos como príncipes, é preciso pensar que príncipes e princesas serão estes. Porque, se ser príncipe significa ser como Edward, príncipe do filme “Encantada”, um clássico da Disney, um cavalheiro melódico e potencialmente perfeito para a princesa daquela história, que também passava os dias a cantar e dançar - e que, por sinal, teve seu final feliz com um homem nada encantado -, fico pensando quantos meninos irão querer ser parecidos com o lindo Edward e nas dificuldades que encontrarão na busca por um par que consiga conviver com tanta chatice melódica e açucarada.
E se a princesa for como Merida, a princesa valente? Ou como a Rapunzel, na versão de Enrolados? Ou ainda como Xena, a princesa guerreira? Como será difícil fazer casar nossas princesas, que duvido aceitem o estereótipo de belas, recatadas e do lar. E quais seriam os príncipes dispostos a partilhar o cotidiano doméstico com uma dessas bravas princesinhas?
O mundo dos príncipes e princesas, na ficção e na realidade, é muito diverso também. Já não podemos estereotipar nem mesmo a realeza, imagina as nossas crianças em seus espaços de convivência cotidiana. É preciso tirar os antolhos, ampliar o olhar, abrir-se ao diálogo e dialogar, se quisermos partilhar um futuro mais humano para a humanidade.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

CORTINAS DE FUMAÇA (CRÔNICA DA SEMANA)


Em batalhas e guerras da antiguidade, especialmente em combates marítimos, os barcos se escondiam em meio à névoa para ficarem protegidos de seus inimigos. Essa névoa, que podia ser natural ou produzida pelas próprias chaminés dos navios, era chamada de cortina de fumaça. Conta-se, que com o aprimoramento das técnicas de combate, elementos tóxicos passaram a ser incorporados às cortinas de fumaça, transformando a névoa numa arma poderosa contra os inimigos. Deste modo, as cortinas de fumaça passaram a ser produzidas e utilizadas também para o ataque.  
Hoje em dia, essas técnicas de ataque não são mais utilizadas em combates navais. Uma versão mais atual, porém, são as bombas de gás lacrimogêneo, que quando lançadas, tornam-se verdadeiras cortinas de fumaça. O gás, por sua vez, produz uma resposta química em quem é atingido por ele, tornando a pessoa mais frágil frente a quem jogou a bomba.
Uma cortina de fumaça, nessa perspectiva, é sempre uma forma de subjugar alguém, enleando seus sentidos para embaçar seu foco. Cortina de fumaça é um jogo de enganação. A mídia nos joga cortinas de fumaça o tempo todo. As propagandas são cortinas de fumaça, que nos fazem pensar ter necessidade real do que é supérfluo, em detrimento do que realmente nos é necessário.
Em tempos mais recentes, no entanto, muitas temáticas têm sido tratadas como cortinas de fumaça. São temas, dizem alguns, menos importantes. Enganam-se, porque não é menos importante uma pauta que busca regrar, sem diálogo algum com a sociedade, o modo de viver, até mesmo no espaço doméstico.
Toda essa discussão sobre menina veste rosa, menino veste azul; meninas serão chamadas de princesas e meninos de príncipes; um revólver é tão perigoso na mão de uma criança quanto um liquidificador, entre outros tantos, não são cortinas de fumaça. E vale lembrar que, ainda que o fosse, onde há fumaça há fogo.
Dizer tratar-se de metáforas o modo como essas questões chegam aos nossos olhos e ouvidos, é não querer se responsabilizar pelo próprio modo de pensar e dizer. ou não dimensionar o poder da metáfora.
No livro “O carteiro e o poeta”, a mãe da jovem Beatriz, preocupada com o que o carteiro pudesse ter feito para seduzir a filha e descobrindo que ele havia usado apenas palavras, simples metáforas, sem em nenhum momento ter tentado tocá-la, disse que preferia que um bêbado da estalagem lhe passasse a mão, do que um carteiro que ficasse lhe dizendo que seu sorriso se estende como uma borboleta.
As palavras, independente do contexto, sempre dizem algo. Uma metáfora é um jeito diferente de dizer algo, mas diz. É ingenuidade pensar que metáforas são inofensivas, elas têm poder de seduzir e convencer. Elas podem até ser cortina de fumaça, no sentido que falam de modo figurativo e com isso, nem todas as pessoas entenderão exatamente o que a mensagem quer dizer, mas ainda assim, subliminar ou não, metaforicamente ou não, toda mensagem tem algo a dizer e muito a expressar. 
#lelaludens #lelamayer #simplesassim #cronicadasemana #cortinasdefumaça

segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

NUM SEGUNDO

(Foto: Léla Mayer, 2019) 

                                        (um texto de Andiana Freitas)

Os dias tem sido apressados. Chegam antecipados, com informes frenéticos e em excesso se espalham pelas telas atentas que nos tomam de assalto. Dias que nos empurram sem delicadeza e nenhuma educação, até bambearmos as pernas, até que absorvamos todas as manchetes, até secarmos a saliva, até a paralisia, até que o medo se erga cínico. São dias de mentira, mal pintados, mal tecidos, que falseiam! Mostram-se obscuros, pelo simples prazer de sufocar.
De onde vieram, ostentando um estandarte mofado, roto, malcheiroso de velhos tempos? E como podem estar apressados, ao mesmo tempo em que deixam em evidência o desejo de retrocesso?

Os dias tem sido serenos. Chegam sem pressa e, silentes, aguardam nossos movimentos. Dias de delicadeza, que atraem nossos passos para longe das telas, até que absorvamos todos os movimentos do céu, até compreendermos as sementes, até sentirmos o coração, fermentado pela confiança, se avolumar. São dias de descobertas, de surpresas e encantamentos que não falam de verdades, nem de mentiras - não falam. Mostram-se exuberantes pelo simples fato de serem o que são. De onde vieram, ostentando olhares doces, artes que enlevam, pássaros, flores, abraços e o frescor da eterna brotação? E como podem estar serenos, ao mesmo tempo em que deixam em evidência o desejo de serem observados sem desatenção?

Entro num dia, saio n’outro.
Entre o entrar e o sair, conexões, redes com os iguais, ligações com os opostos.
Todos os dias estão em mim, em nós, das noites aos dias, dias às noites.
Todos os dias a caminho, passo a passo, no tempo e fora dele, de mãos dadas e invisíveis.
Todos os dias que construímos são um só e cabem nesse segundo.

"Seja o que for que chamemos realidade, ela só nos é revelada através de uma construção ativa da qual participamos". - Ilya Prigogine


Andiana Freitas (musicista, professora de música, artesã, técnica em informática e apaixonada por bicicleta)
Fonte: http://www.ativismodelicado.art.br/blog/num-segundo