quarta-feira, 21 de junho de 2017

NENHUMA HISTÓRIA A MENOS


A história da humanidade é repleta de episódios que falam sobre o perigo que o acesso à informação sempre representou aos “donos do poder”. Hoje a informação é livre, de forma indiscriminada e, muitas vezes, distorcida.  Neste contexto, a capacidade de ler o mundo e as letras de modo crítico e lúcido, torna-se um perigo ainda maior para aqueles que necessitam de um povo que use antolhos no lugar de lentes.
No Brasil atual vê-se uma avalanche de discursos moralistas, despejados sobre nossas vidas pelos que se intitulam senhores da moral e dos bons costumes, os tais cidadãos de bem, engessados pelos seus dogmatismos, falso moralismos e preconceitos. Discursos que se fundamentam não em estudos, não no diálogo compartilhado, na escuta, na troca de ideias, mas nas crenças do que pensam ser melhor. Acontece que o que penso ser o melhor para o meu filho, pode não ser o melhor para o seu. Por isso é que não se pode gerenciar uma instituição, cidade, estado ou nação com o que se pensa ser o mais adequado para uma pessoa ou um grupo de pessoas apenas.
No início do mês de junho o Ministério da Educação (MEC) decidiu recolher 93 mil exemplares do livro “Enquanto a noite não vem”, das Escolas Públicas de Ensino Fundamental. O livro, de autoria do escritor, ator e contador de histórias José Mauro Brant, reúne novas versões de oito contos populares, entre eles "A triste história de Eredegalda", que fala do desejo de um rei em se casar com a mais bonita de suas três filhas. Diante da negativa, a menina é castigada e termina sendo presa em uma torre.
O argumento para a retirada dos 93 mil livros das escolas é de que o conto "A triste história de Eredegalda" faria apologia ao incesto.  Veja bem, o fato de uma obra tematizar incesto, não quer dizer que faça apologia do incesto. Pelo contrário, os contos de fadas cumprem com uma função primordial que é permitir ao leitor vivenciar situações de medo, angústia, raiva, perda, por empréstimo, a partir das histórias de seus personagens. É porque a pessoa vivencia esses sentimentos negativos nos livros, assim como em filmes, séries e telenovelas, que não precisa trazê-los para a vida real.
Não é negando ou escondendo a existência de violência no mundo que se ajudará nossas crianças a transformá-lo num lugar melhor para se viver. Afinal, quantas vezes as crianças ficam junto na sala, enquanto os pais assistem aos telejornais e novelas?! Ou seja, nossas crianças são postas o tempo todo em contato com a realidade, de modo orgânico e direto, numa narrativa que é do mundo adulto. Essa situação tão real e cotidiana é que deveria preocupar aos adultos, porque esta sim apresenta uma narrativa que pode aterrorizar de fato uma criança.
O livro de José Mauro Brant foi publicado em 2003 e comprado pelo governo federal, através do Programa de Alfabetização na Idade Certa (Pnaic), em 2005 e novamente em 2014. Antes de ser selecionado pelo MEC, ele foi avaliado por uma equipe composta por doutores e mestres especialistas do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale) da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ou seja, ele não caiu de paraquedas nas escolas!!
Se os novos avaliadores do MEC (se é que há uma comissão) acreditam que este conto é impróprio para a faixa etária indicada, não poderiam ter apenas reclassificado para outra faixa etária? Não há justificativa razoável para o recolhimento de 93 mil livros das escolas da Rede Pública. Antes se oferecesse aos professores qualificação profissional como mediadores de leitura. Há outros contos no livro, se você não gosta de um conto, não o leia.
Quanto às crianças, não às subestimem, porque assim como Eredegalda, elas são capazes de discernir o que é certo do que é errado, principalmente quando se lhes permite discutir sobre essas questões. Quando não são capazes de compreender uma história porque ainda não têm maturidade suficiente para elaborar questões mais complexas, a leitura acontecerá naturalmente de modo superficial. O adulto não precisa intervir de modo tão direto.
A arte promove o pensamento crítico, amplia a capacidade de olhar, ao mesmo tempo que permite a cada pessoa perceber melhor o mundo e perceber-se no mundo. Isso, no entanto, acontece de um modo subjetivo e indireto, cada pessoa compreende a arte de modo diferente em diferentes momentos da vida, porque dia a dia amadurecemos e nos modificamos. Qualquer forma de barrar o acesso à arte é limitadora e empobrecedora!
Léla Mayer

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