quinta-feira, 8 de novembro de 2018

DOENÇA RUIM (CRÔNICA DA SEMANA)


Lembro, desde criança, que meu avô jamais pronunciava a palavra câncer. Era como se a palavra carregasse consigo um mau agouro. Assim, quando precisava falar “daquela doença”, utilizava a expressão “doença ruim”. Creio que ele pensava que não falando da doença, ficaria imune a ela. Ainda hoje muitas pessoas preferem não ir ao médico, preferem não investigar, não saber. - Melhor não ficar procurando doença, dizem. Não entendem que muitas doenças, se diagnosticadas precocemente, podem ser melhor tratadas e até mesmo curadas. Não falar de uma doença não deixa ninguém imune a ela. Pelo contrário, falar francamente e informar corretamente é a única chance de um diagnóstico precoce e um tratamento mais eficaz.
Nestes últimos meses parece ter virado modismo no Brasil censurar livros infantis e infanto-juvenis, impedir que temas importantes sejam abordados na escola, moralizar discursos, aniquilar a arte e a cultura, aprisionar o pensamento crítico. Veja bem, não querer que crianças descubram o medo, a morte, a dor, por meio da literatura, assim como proibir que os jovens falem - de forma mediada pelo adulto - sobre drogas, sexo, gravidez precoce, entre tantas temáticas que lhes desperta a curiosidade, não é protegê-los, muito pelo contrário, isso os deixa frágeis frente às adversidades da vida. Como enfrentar monstros bem maquiados se nunca lhes foi dito que monstros existem e que podem se disfarçar muito bem?
Não falar sobre temas inquietantes é como não falar da doença ruim. Não falar em estupro, por exemplo, não vai evitar que uma criança ou jovem seja estuprado, vai apenas deixá-los mais expostos. Por desconhecerem, por não saberem que há limites e regras de comportamento e que as pessoas de todas as idades, até mesmo adultos, familiares, amigos, devem respeitar essas regras, tornam-se presas fáceis, frágeis. Para prevenir é preciso falar. Não basta punir o criminoso, pois isso não evitará a dor, nem eliminará o trauma de quem foi submetido a este ou outro tipo de violência. É preciso evitar que violências aconteçam, que se multipliquem e deixem danos irreparáveis nas vidas das pessoas.
O diálogo e a informação são as melhores ferramentas para educar, seja em casa, na escola, na roda de amigos. A escola, no entanto, tem papel fundamental em apresentar a informação de forma contextualizada. Promover a discussão de temas polêmicos, permitir o acesso à literatura de qualidade, fomentar o pensamento crítico, não é doutrinação. Doutrinar é o contrário disso, doutrinar é incutir ideias e atitudes que não permitem ao outro enxergar o mundo pelas próprias lentes, mas apenas pela lente do doutrinador. A doutrinação diferencia-se da educação especialmente pelo fato de que se espera que a pessoa doutrinada nunca questione ou analise criticamente o que lhe é ensinado.
Esse discurso pronto que estamos a ouvir com olhos e ouvidos por aí, que rotula professores de doutrinadores, chama artistas de vagabundos e agricultores de bandidos é tóxico, descontextualizado e perigoso. Um projeto de lei que busca colocar antolhos nos alunos e mordaça nos professores, fragiliza uma sociedade inteira, porque tira de nossas crianças e nossos jovens a capacidade de reconhecer o perigo, de criar estratégias de prevenção e defesa para os muitos tipos de violência. Nossa sociedade está doente de muitas formas e não falar de suas doenças ruins não impedirá que o câncer avance, mas tornará impossível qualquer tipo de tratamento, precoce ou paliativo.


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