A história da humanidade é
repleta de episódios que falam sobre o perigo que o acesso à informação sempre
representou aos “donos do poder”. Hoje a informação é livre, de forma indiscriminada
e, muitas vezes, distorcida. Neste
contexto, a capacidade de ler o mundo e as letras de modo crítico e lúcido,
torna-se um perigo ainda maior para aqueles que necessitam de um povo que use
antolhos no lugar de lentes.
No Brasil atual vê-se uma
avalanche de discursos moralistas, despejados sobre nossas vidas pelos que se intitulam
senhores da moral e dos bons costumes, os tais cidadãos de bem, engessados
pelos seus dogmatismos, falso moralismos e preconceitos. Discursos que se
fundamentam não em estudos, não no diálogo compartilhado, na escuta, na troca
de ideias, mas nas crenças do que pensam ser melhor. Acontece que o que penso ser
o melhor para o meu filho, pode não ser o melhor para o seu. Por isso é que não
se pode gerenciar uma instituição, cidade, estado ou nação com o que se pensa
ser o mais adequado para uma pessoa ou um grupo de pessoas apenas.
No início do mês de junho o Ministério
da Educação (MEC) decidiu recolher 93 mil exemplares do livro “Enquanto a noite
não vem”, das Escolas Públicas de Ensino Fundamental. O livro, de autoria do
escritor, ator e contador de histórias José Mauro Brant, reúne novas versões de
oito contos populares, entre eles "A triste história de Eredegalda", que
fala do desejo de um rei em se casar com a mais bonita de suas três filhas.
Diante da negativa, a menina é castigada e termina sendo presa em uma torre.
O argumento para a retirada
dos 93 mil livros das escolas é de que o conto "A triste história de
Eredegalda" faria apologia ao incesto. Veja bem, o fato de uma obra tematizar
incesto, não quer dizer que faça apologia do incesto. Pelo contrário, os contos
de fadas cumprem com uma função primordial que é permitir ao leitor vivenciar
situações de medo, angústia, raiva, perda, por empréstimo, a partir das
histórias de seus personagens. É porque a pessoa vivencia esses sentimentos
negativos nos livros, assim como em filmes, séries e telenovelas, que não
precisa trazê-los para a vida real.
Não é negando ou escondendo a
existência de violência no mundo que se ajudará nossas crianças a transformá-lo
num lugar melhor para se viver. Afinal, quantas vezes as crianças ficam junto
na sala, enquanto os pais assistem aos telejornais e novelas?! Ou seja, nossas
crianças são postas o tempo todo em contato com a realidade, de modo orgânico e
direto, numa narrativa que é do mundo adulto. Essa situação tão real e
cotidiana é que deveria preocupar aos adultos, porque esta sim apresenta uma
narrativa que pode aterrorizar de fato uma criança.
O livro de José Mauro Brant
foi publicado
em 2003 e comprado pelo governo federal, através do Programa de Alfabetização
na Idade Certa (Pnaic), em 2005 e novamente em 2014. Antes de ser selecionado
pelo MEC, ele foi avaliado por uma equipe composta por doutores e mestres
especialistas do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale) da
Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ou seja,
ele não caiu de paraquedas nas escolas!!
Se os novos avaliadores do MEC (se é que há uma
comissão) acreditam que este conto é impróprio para a faixa etária indicada,
não poderiam ter apenas reclassificado para outra faixa etária? Não há
justificativa razoável para o recolhimento de 93 mil livros das escolas da Rede
Pública. Antes se oferecesse aos professores qualificação profissional como
mediadores de leitura. Há outros contos no livro, se você não gosta de um conto,
não o leia.
Quanto às crianças, não às subestimem, porque assim
como Eredegalda, elas são capazes de discernir o que é certo do que é errado,
principalmente quando se lhes permite discutir sobre essas questões. Quando
não são capazes de compreender uma história porque ainda não têm maturidade
suficiente para elaborar questões mais complexas, a leitura acontecerá
naturalmente de modo superficial. O adulto não precisa intervir de modo tão
direto.
A arte promove o pensamento crítico, amplia a
capacidade de olhar, ao mesmo tempo que permite a cada pessoa perceber melhor o
mundo e perceber-se no mundo. Isso, no entanto, acontece de um modo subjetivo e
indireto, cada pessoa compreende a arte de modo diferente em diferentes
momentos da vida, porque dia a dia amadurecemos e nos modificamos. Qualquer
forma de barrar o acesso à arte é limitadora e empobrecedora!
Léla Mayer
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