O escritor escreve
para expressar algo, uma ideia, um sentimento, uma ruminação. Toda arte é uma
forma de transbordamento. Às vezes, transbordamos algo que nos inquieta ou nos
desacomoda. Outras vezes, transbordamos desejos que somos ainda incapazes de
tornar realidade.
A crônica, muitas
vezes, é uma ruminação. Colocamos nosso desejo ou nossa inquietação no papel e
deixamos registrado, como um voto íntimo e pessoal que fazemos. Ouso dizer que
o cronista escreve para, através das suas ruminações, melhor entender o mundo e
se entender no mundo. Neste sentido, a crônica é um texto egoísta, porque nela
a gente organiza ideias, guarda memórias, repensa os afetos, analisa os fatos,
pensa a vida. O leitor, por sua vez, por motivos de empatia com o sentimento,
tema, memória afetiva, ou com os fatos abordados, pode se identificar de tal
modo com a leitura que pensa ser o texto a ela destinado.
Penso que isso
acontece com todas as artes em que nos vemos identificados. Eu sou daquelas
pessoinhas que gosta de escutar CD no carro. E muitas vezes penso que algumas
músicas foram compostas para mim, que estão tentando me dizer algo e que eu
preciso levar mais a sério aquilo que a letra me diz. Sim, isso é bem normal
(eu acho)!!
Hoje, fui levar
meu filho na escola e na volta estava tocando “Amor de Índio”, na voz de seu
compositor. Amo essa música, mas tenho um conflito interno com ela, porque,
seja o Beto Guedes, o Milton Nascimento ou a Maria Gadu cantando, só dou conta
de acolher parte da letra. No carro, cantarolava com paixão, junto com Beto
Guedes: “Sim, todo amor é sagrado e o fruto do trabalho é mais que sagrado,
meu amor”. Neste momento da canção sempre penso no tanto trabalho que
realizo, sempre dormindo pouco e escrevendo, atendendo, corrigindo, produzindo
muito. Mas está tudo certo, afinal “o fruto do trabalho é mais que sagrado”,
quero acreditar.
Mas a música anda
e Beto Guedes segue cantando: “Lembra que o sono é sagrado e alimenta de
horizontes o tempo acordado de viver”. Daí vem a culpa de dormir pouco e de
não fazer o que deveria para cuidar de mim. Esqueço até que a “abelha
fazendo mel, vale o tempo que não voou” e lembro que está na hora de adoçar
mais a vida. Mas preciso terminar de corrigir provas e trabalhos de conclusão,
preparar oficinas, organizar o novo livro, escrever pareceres e uma crônica
(esta).
Neste momento penso
que, com certeza, outros tantos também devem estar a dormir pouco e trabalhar
muito, mas talvez não escrevam crônicas para transbordar. E eu aqui, em puro
transbordamento!! Por isso, deixo a dica (falo para mim mesma, para ver se
aprendo. Afinal, essa é uma crônica egoísta, lembra?!), o importante é
transbordar, do jeito que for possível, fazendo um bolo ou pedalando uma
bicicleta, fazendo palavras cruzadas ou jogando de futebol, vendo um filme ou
lendo um livro, meditando ou jogando conversa fora. O que não dá é para guardar
sentimentos e cansaços, nem transbordar ressentimentos ou lamentações.
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